domingo, 30 de agosto de 2009

A alegoria da caverna



















Uma adaptação animada da alegoria da caverna (http://www.platosallegory.com)  A caverna de Platão é uma das mais icónicas e emblemáticas experiências mentais da história da filosofia e da cultura ocidental em geral. Conhecida como a 'alegoria da caverna', encontra-se n' A República, no livro VII (514a-517a), logo pós a alegoria da linha (no final do livro VI), e pretende ilustrar a Teoria das Formas (ou Ideias) e ligá-la a uma perspectiva sobre a educação.

Eis como Sócrates a apresenta (sem as falas de Gláucon) [uso a edição da Fundação Calouste Gulbenkian, com tradução, introdução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira]:
 «Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no género dos tapumes que os homens dos "robertos" colocam diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles. (...)
Visiona também, ao longo deste muro, homens que transportam toda a espécie de objectos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem calados. (...)
Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que eles julgariam estar a nomear objectos reais, quando designavam o que viam? (...)
E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa senão que era a voz da sombra que passava? (...)
Considera o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objectos cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objectos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objectos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objectos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam? (...)
Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objectos para os quais podia olhar, e julgariam ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os lhe lhe mostravam? (...)
E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por assim ser arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objectos? (...)
Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objectos reflectidos na água, e, por último, para os próprios objectos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia. (...)
Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo... (...)
Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo. (...)
Se um homem nessas condições descesse de novo para o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar subitamente  da luz do Sol? (...)
E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista — e o tempo de se habituar não seria pouco — acaso não causaria o riso e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam? (…)»
É um trecho tão comentado que o seu significado mais corrente (explicitado no mesmo livro por Sócrates) é acessível a qualquer leitor. As leituras (filosóficas e religiosas, sobretudo) que, ao longo da história, foi capaz de suscitar, no entanto, são variadas. Algumas interpretações desta alegoria — a começar pela do próprio Platão, na voz de Sócrates —, assim como algumas perplexidades que ela me desperta, ficam para outro texto.


Paulo Lopes

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