sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A alegoria da caverna: perplexidades (3)

3) Além disso, é altamente improvável que homens nestas condições, aprisionados desde a infância, pudessem adquirir quaisquer competências linguísticas significativas. É difícil admitir que, “se eles fossem capazes de conversar uns com os outros (…), julgariam estar a nomear objectos reais, quando designavam o que viam” (515b): sem modelação linguística, desde pequenos, como nomeariam qualquer coisa?


Paulo Lopes

8 comentários:

julio disse...

Talvez Platão tenha pensado que um pouco de imaginação do auditório resolvia a questão.Bastaria modificar "um pouco" as condições da aprendizagem dos prisioneiros. O pior é que, como fazes notar, as mudanças deveriam ter sido grandes e, por isso, talvez se pode dizer que Platão foi um pouco desleixado,,,

Phronesis disse...

Aqui penso que tens razão nas duas observações (algo discordes): por um lado, a imaginação do leitor ou auditório poderia suprir a falta de indicações ou sugestões platónicas sobre a educação daqueles prisioneiros (deixando na sombra, mas supondo-as, algumas condições apropriadas de aprendizagem daqueles prisioneiros - afinal de contas, a experiência tem, pretensamente, uma forte dimensão educacional); por outro lado, se a experiência tem uma vocação educacional, então a negligência de Platão parece mais o prolongamento de um pensamento negligente ou inconsequente. Porque, em 516c-d, vai ao ponto de imaginar jogos competitivos que pressupõem uma aprendizagem social que não se percebe como poderiam ter obtido: "[Sócrates]Quando ele se lembrasse da sua primeira habitação, E DO SABER QUE LÁ POSSUÍA (maiúsculas minhas), dos seus companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se regozijaria com a mudança e deploraria os outros? (...) E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si, ou prémios para o que distinguisse com mais agudeza os objectos que passavam , e se lembrasse melhor quais os que costumavam passar em primeiro lugar e quais em último, ou os que seguiam juntos, e àquele que dentre eles fosse mais hábil a predizer o que ia acontecer - parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que havia entre eles ou (...) antes sofrer tudo do que regressar àquelas ilusões e viver daquele modo?"

Paulo

Castro L. disse...

2. Se os chimpanzés conseguissem articular algumas palavras, e se a capacidade intelectiva o consentisse, talvez pudessem nomear algumas coisas. Isto quer dizer que, se adquirissem a capacidade da fala, teriam adquirido igualmente a competência linguística. Não precisa de ser significativa. Como lá se diz, “eles assemelham-se-nos”; se, por hipótese, falassem, nessa condição, articulariam linguisticamente, sem necessidade de qualquer educação diferente da condicente com a condição da caverna (não pode ser absolutamente afastada, tomada como ausente, mesmo naquelas condições). Eles ouvem sons-sombra (ecos) que distinguem; vêem sombras, mas vêem; em resumo, percebem coisas parecidas – nas sombras – às que se percebem fora da caverna. Logo, se falassem, a sua competência linguística seria uma competência-sombra, um balbuciar pueril, como àquela perversidade que é feita às crianças de dizer que deus está no céu – por conseguinte, apontam para as nuvens, para as estrelas, para o sol, erraticamente, fantasiando apontar para Deus, nomeá-lo. Curiosamente, Platão refere mais à frente que “a educação é a arte de orientar (…). Não consiste em dar a visão ao órgão que já a possui”. (o tom é correctivo, desviando a vertente da aprendizagem – do educando – para o pedagogo, onde passa a ser colocada a tónica). Se levássemos a analogia por diante, os prisioneiros nomeariam mal, como lá vai dito, as sombras como sendo os objectos reais, mas nomeariam, na medida da sua “competência linguística sombra”, com uma modelação-sombra (faltando unicamente a ‘orientação educativa’ para se libertarem das competências-sombra). No Crátilo, como me relembrou a minha amiga Sónia, vem assumido que a investigação filosófica não é sobre as palavras mas sobre as coisas que elas representam. Porém, uma hipótese metodológica ali apontada para a investigação seria a de tomar, progressivamente, as palavras como se fossem as coisas reais para depois nos libertarmos delas e olhar a realidade ela mesma, inicialmente figurada nas palavras. Há aqui alguma parecença com o esquema das sombras, conquanto acrescente um dado fundamental: a filosofia passa pela palavra.
Finalmente, Paulo, como já falaste na televisão, o último parágrafo tem uma relação com o que Paul Virilio diz ser a TV, uma espécie de lucarna, onde a imagem é trans-horizontal: venera-me mais a imagem do que a coisa mesma que ela poderia representar; só a imagem importa. E ficamos numa espécie de mundo-sombra, onde é dado relevo quase exclusivo a um único sentido: a visão, orientada para o desfile de imagens (como na Caverna).

Phronesis disse...

Abres o teu comentário (de resto, consistente)com dois pesados 'ses': a competência linguística não é apenas uma questão de predisposição genética (de, como espécie, possuirmos a informação genética para se desenvolverem as redes neuronais apropriadas) mas, sobretudo, epigenética. É preciso uma exposição à fala articulada desde a mais tenra idade; é por isso que os casos de tentativas de reeducação das 'crianças selvagens' não têm sido felizes: a janela de oportunidade, o período crítico de maturação das estruturas biológicas herdadas (cujo pico corresponde à primeira infância e mais um par de anos) já tinha passado para elas.
Mas a possibilidade de uma educação, como bem observas, não pode ser absolutamente afastada: se aceitamos o convite platónico e imaginamos que alguém prende aqueles homens, porque não há-de também querer educá-los? A experiência não tem justamente uma vocação educacional?
Até depois.

Paulo

Fernando Barão disse...

Arrogâncias à parte, o tema é um pouco maçador e sem interesse. Gostaria antes de ver discutida, por exemplo, a possibilidade de os prisioneiros terem ou não adquirido o sentido de ecolocalização ou biosonar. :-)

Phronesis disse...

É quase certo, Barão, que teriam adquirido a capacidade de revelar comportamentos de ecolália. Mas suponho que menos que ecolocalização não te satisfaz, não é? :)
E o filme "Martyrs" (de que falei numa entrada anterior), interessa-te?
Obrigado pela (animada) participação.

Paulo

Carlos Pires disse...

Paulo:

Mas será isso relevante para a interpretação filosófica? Trata-se de uma alegoria... As alegorias, metáforas, analogias, etc., contêm sempre alguma imprecisão. É implausível que eles possuíssem linguagem como é implausível que não precisassem aparentemente de comer nem de ir à casa de banho, para não falar nas dores corporais que deviam ter se estavam imobilizados naquela posição.
Mas objectar isso é equivalente a criticar a história da cigarra e da formiga com base no facto das cigarras e das formigas não falarem.

Cumprimentos

Phronesis disse...

Caro Carlos:
Como se costuma dizer nos arroubos retóricos, permite-me que discorde, embora agradeça esta chamada à terra (se é disso que se trata).
É muito conveniente que seja uma alegoria e que a possamos irmanar com as metáforas, as analogias, os mitos e até as fábulas: assim, a que é que não fecharemos os olhos, complacentes?
O trecho em causa (515b - ao qual se dirige a minha perplexidade) evoca o problema da aquisição linguística (que se pode abordar filosoficamente, como -nem por acaso - fez o próprio Platão no Crátilo ou, em menor grau e de modo mais genérico, n'O Sofista).
Mas, olhando para a analogia fornecida (a fábula da cigarra e da formiga), e dando como um facto seguro que as cigarras e as formigas não falam, não deveremos admitir que uma parte relevante da nossa avaliação da fábula consiste em reconhecermos, por exemplo, que, se estas personagens fossem reais e falassem, seriam pertinentes os comportamentos e falas narrados? Porque, se assim não fosse, como poderíamos pôr-nos de acordo com a 'moral da história'? O autor dá-nos livremente as premissas do seu mundo - mas tem que jogar a partir delas. Platão faz isso irrepreensivelmente? As perplexidades aqui apontadas sugerem que (na minha opinião, naturalmente) não: apesar do seu impacto na cultura popular — a par das alegorias dos evangelhos sinópticos ou do famoso (e equívoco) cogito de Descartes, não é particularmente rica enquanto experiência mental (como opinei na entrada "Perplexidades (1)".
Os promotores das cavernas reais (e não apenas nos casos, de maior liberdade corporal e de movimentos, de Elisabeth Fritzl, Jaycee Dugard ou Natascha Kampush) têm soluções para a logística da alimentação e da satisfação de necessidades excretórias (o filme Martyrs mostra algumas).
Dispenso-me levianamente de comentar a acusação de literalismo com que encerras o teu comentário, mas, já agora - francesinha por inglesinha -, a interrogação da abertura "...'a' interpretação filosófica" não será uma imprecisão metonímica? Não seria tentador perguntar, como fazem por vezes os filósofos ingénuos a propósito da realidade, se 'a' interpretação filosófica existe mesmo?

Cumprimentos.

Paulo Lopes

P.S.: Felicito-te pelo blog (num formato mais flexível e interessante do que este) de que és co-autor e a que há pouco dei uma vista de olhos: gostei.