segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A alegoria da caverna: leituras

A interpretação prontamente oferecida por Sócrates é também uma das mais conhecidas:
«Meu caro Gláucon, este quadro (…) deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la.» (517a-b)
Ela responde com determinação às perguntas que procuram uma chave: o que representam os elementos da alegoria? Os prisioneiros da caverna: todos aqueles de nós que tomamos sombras pela realidade; o mundo da caverna: o mundo sensível (as sombras são os objectos particulares mutáveis e os objectos causadores das sombras são, naturalmente, as suas Formas reais, perfeitas e imutáveis); o prisioneiro que sobe: a ascensão do sensível ao inteligível (o verdadeiro conhecimento é o conhecimento das Formas e, em última análise, do Bem); contemplar o Sol: contemplar o Bem.
O mundo real não é visível; estamos presos num mundo de sombras e demoramos a concluir que o mundo da nossa experiência comum é uma ilusão (e muitos de nós nunca chegam a ultrapassar este nível).
Ora, justamente uma das metas educativas da visão platónica é, pois, ‘produzir’ habitantes bem dotados que façam com sucesso este itinerário — para depois assumirem a missão de descer de novo à caverna e instruir os seus iludidos prisioneiros (519c-520a).
Seria estranho que as leituras modernas da alegoria de um filósofo que tão insistentemente explorou as metáforas proporcionadas pela visão ignorassem uma das mais poderosas invenções civilizacionais: a televisão. Para alguns pensadores e pedagogos de meados do século XX, as democracias, que devem estar mais ou menos comprometidas com a educação universal dos seus cidadãos, poderiam, graças à televisão, levar a cultura às massas. As massas não frequentavam o teatro ou a ópera, por exemplo, porque não tinham criado esse tipo de hábito e, sobretudo, porque o acesso a estes bens culturais era caro. Ora, a televisão podia ser o instrumento educador do século, permitindo o contacto com bens culturais que, de outro modo, não estavam ao alcance das massas: programas de e sobre arte, política, ciência, filosofia, religião — quantas promessas de progresso parecia conter a televisão! Duas ou três décadas de televisão de massas bastaram para fazer da televisão um dos alvos preferidos das críticas da população cultivada, desde a presença perniciosa e banalizada da violência ao reconhecimento do poder manipulatório e alienante da televisão, do tempo que as crianças passam frente a essa caixa mágica (tornando difusa a distinção entre o mundo real e o mundo televisivo) ao lixo televisivo de muitas estações (que, dizem sem pudor muitos dos seus directores de programas, fornecem democraticamente o que as pessoas verdadeiramente querem ver).
Basta procurar no You tube e uma grande parte das variadas encenações desta alegoria não resiste a glosar a analogia caverna-televisão: o mundo das sombras está naquela caixa.
Nesta leitura moderna, os prisioneiros são as pessoas conformistas, que aceitam acriticamente as ideias, condutas e noções dominantes (as aparências) veiculadas pela televisão e compatíveis com as crenças que já possuem.
Paulo Lopes