sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A alegoria da caverna: perplexidades (3)

3) Além disso, é altamente improvável que homens nestas condições, aprisionados desde a infância, pudessem adquirir quaisquer competências linguísticas significativas. É difícil admitir que, “se eles fossem capazes de conversar uns com os outros (…), julgariam estar a nomear objectos reais, quando designavam o que viam” (515b): sem modelação linguística, desde pequenos, como nomeariam qualquer coisa?


Paulo Lopes

A alegoria da caverna: perplexidades (2)

2) Em segundo lugar, porque é que os prisioneiros são do sexo masculino? Que pormenor relevante teria Platão em vista que pudesse justificar esta opção? Se são semelhantes a nós (como pretende Sócrates), não seria mais adequado que houvesse homens e mulheres?


Paulo Lopes

A alegoria da caverna: perplexidades (1)






É uma narrativa dramaticamente simples — daí, talvez, o seu apelo. A sua ideia central é acessível e espiritualmente sugestiva: nós somos como aqueles prisioneiros; para quem quer que esteja genuinamente comprometido com o saber, é um dever intelectual e político libertar-se destas sombras ou aparências e procurar a origem destes simulacros no plano inteligível.
Por outro lado, talvez padeça justamente duma propensão muito simplificadora: não é fácil entrar realmente no jogo de imaginação proposto e dele extrair consequências interessantes (para além da interpretação que o próprio Platão põe na boca de Sócrates e da analogia caverna – televisão, mencionadas na entrada anterior). N’A Caverna (2000) — tentativa de exploração secundária desta imagem de Platão —, José Saramago não foi, na prática, muito além da alusão.
Uma experiência mental pode encerrar uma situação impossível e, mesmo assim, ser intelectualmente rica — ou porque estimula uma abordagem criativa ou crítica do cenário hipotético, revelando ou sugerindo consequências com impacto na consideração do problema em análise, ou porque permite disciplinar, clarificar ou refinar os dados do problema de um modo novo. Ora a alegoria de Platão, apesar do seu impacto na cultura popular — a par das alegorias dos evangelhos sinópticos ou do famoso (e equívoco) cogito de Descartes (“Penso, logo, existo”) —, não é particularmente rica enquanto experiência mental.
Eis algumas perplexidades que, perante a descrição socrática, me acodem.
1) Em primeiro lugar, que desígnio terá motivado a sinistra ideia de pôr aqueles homens algemados (de tal modo que só podem olhar em frente) desde a infância? Ou seja, no cenário de Platão, estas pessoas teriam nascido, vivido um período de normal crescimento aí de, digamos, três anos (a chamada primeira infância) — embora a crueldade presente nas propostas desta obra platónica pudesse muito bem supor um período de apenas um ano, depois de a criança ser desmamada e se conseguir sentar — e depois alguém (um grupo organizado com uma agenda “educacional” secreta e minuciosa?) os raptava (ou estaria em condições de usar o poder político para os alienar) e os aprisionava naquela caverna preparada para os receber: uma “habitação subterrânea em forma de caverna” (assim a descreve Sócrates, logo no início) [514a]. Como se tivesse sido alterada ou adaptada com um propósito. As representações da caverna no início desta entrada sugerem isso mesmo. O filme Martyrs, realizado por Pascal Laugier, parece, em parte, encenar e actualizar, de modo clínico e radical, esse bizarro cenário. 
Antecipando uma objecção (acusação de ingenuidade), talvez deva reconhecer que não ignoro a crueldade das experiências de cavernas reais do nosso século: perante os casos de Natascha Kampush (que viveu durante oito anos numa 'caverna' por baixo da casa do seu raptor), Jaycee Dugard (que viveu dezoito anos no quintal do seu sequestrador e que com ele estabeleceu laços emocionais) e Elisabeth Fritzl (que viveu cativa durante vinte e quatro anos, encarcerada pelo próprio pai, de quem teve sete filhos, três dos quais também habitantes da mesma ‘caverna’), talvez seja injusto e excessivo insinuar que Platão tinha uma costela de monstro.



Paulo Lopes

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A alegoria da caverna: leituras

A interpretação prontamente oferecida por Sócrates é também uma das mais conhecidas:
«Meu caro Gláucon, este quadro (…) deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la.» (517a-b)
Ela responde com determinação às perguntas que procuram uma chave: o que representam os elementos da alegoria? Os prisioneiros da caverna: todos aqueles de nós que tomamos sombras pela realidade; o mundo da caverna: o mundo sensível (as sombras são os objectos particulares mutáveis e os objectos causadores das sombras são, naturalmente, as suas Formas reais, perfeitas e imutáveis); o prisioneiro que sobe: a ascensão do sensível ao inteligível (o verdadeiro conhecimento é o conhecimento das Formas e, em última análise, do Bem); contemplar o Sol: contemplar o Bem.
O mundo real não é visível; estamos presos num mundo de sombras e demoramos a concluir que o mundo da nossa experiência comum é uma ilusão (e muitos de nós nunca chegam a ultrapassar este nível).
Ora, justamente uma das metas educativas da visão platónica é, pois, ‘produzir’ habitantes bem dotados que façam com sucesso este itinerário — para depois assumirem a missão de descer de novo à caverna e instruir os seus iludidos prisioneiros (519c-520a).
Seria estranho que as leituras modernas da alegoria de um filósofo que tão insistentemente explorou as metáforas proporcionadas pela visão ignorassem uma das mais poderosas invenções civilizacionais: a televisão. Para alguns pensadores e pedagogos de meados do século XX, as democracias, que devem estar mais ou menos comprometidas com a educação universal dos seus cidadãos, poderiam, graças à televisão, levar a cultura às massas. As massas não frequentavam o teatro ou a ópera, por exemplo, porque não tinham criado esse tipo de hábito e, sobretudo, porque o acesso a estes bens culturais era caro. Ora, a televisão podia ser o instrumento educador do século, permitindo o contacto com bens culturais que, de outro modo, não estavam ao alcance das massas: programas de e sobre arte, política, ciência, filosofia, religião — quantas promessas de progresso parecia conter a televisão! Duas ou três décadas de televisão de massas bastaram para fazer da televisão um dos alvos preferidos das críticas da população cultivada, desde a presença perniciosa e banalizada da violência ao reconhecimento do poder manipulatório e alienante da televisão, do tempo que as crianças passam frente a essa caixa mágica (tornando difusa a distinção entre o mundo real e o mundo televisivo) ao lixo televisivo de muitas estações (que, dizem sem pudor muitos dos seus directores de programas, fornecem democraticamente o que as pessoas verdadeiramente querem ver).
Basta procurar no You tube e uma grande parte das variadas encenações desta alegoria não resiste a glosar a analogia caverna-televisão: o mundo das sombras está naquela caixa.
Nesta leitura moderna, os prisioneiros são as pessoas conformistas, que aceitam acriticamente as ideias, condutas e noções dominantes (as aparências) veiculadas pela televisão e compatíveis com as crenças que já possuem.
Paulo Lopes

domingo, 30 de agosto de 2009

A alegoria da caverna



















Uma adaptação animada da alegoria da caverna (http://www.platosallegory.com)  A caverna de Platão é uma das mais icónicas e emblemáticas experiências mentais da história da filosofia e da cultura ocidental em geral. Conhecida como a 'alegoria da caverna', encontra-se n' A República, no livro VII (514a-517a), logo pós a alegoria da linha (no final do livro VI), e pretende ilustrar a Teoria das Formas (ou Ideias) e ligá-la a uma perspectiva sobre a educação.

Eis como Sócrates a apresenta (sem as falas de Gláucon) [uso a edição da Fundação Calouste Gulbenkian, com tradução, introdução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira]:
 «Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no género dos tapumes que os homens dos "robertos" colocam diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles. (...)
Visiona também, ao longo deste muro, homens que transportam toda a espécie de objectos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem calados. (...)
Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que eles julgariam estar a nomear objectos reais, quando designavam o que viam? (...)
E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa senão que era a voz da sombra que passava? (...)
Considera o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objectos cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objectos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objectos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objectos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam? (...)
Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objectos para os quais podia olhar, e julgariam ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os lhe lhe mostravam? (...)
E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por assim ser arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objectos? (...)
Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objectos reflectidos na água, e, por último, para os próprios objectos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia. (...)
Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo... (...)
Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo. (...)
Se um homem nessas condições descesse de novo para o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar subitamente  da luz do Sol? (...)
E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista — e o tempo de se habituar não seria pouco — acaso não causaria o riso e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam? (…)»
É um trecho tão comentado que o seu significado mais corrente (explicitado no mesmo livro por Sócrates) é acessível a qualquer leitor. As leituras (filosóficas e religiosas, sobretudo) que, ao longo da história, foi capaz de suscitar, no entanto, são variadas. Algumas interpretações desta alegoria — a começar pela do próprio Platão, na voz de Sócrates —, assim como algumas perplexidades que ela me desperta, ficam para outro texto.


Paulo Lopes

sábado, 4 de abril de 2009

Uma espécie de paradoxo: corvos pretos, coisas não pretas


Embora conhecido por paradoxo dos corvos (ou paradoxo de Hempel), não é verdadeiramente um paradoxo (não gera propriamente uma contradição), mas talvez antes uma perplexidade sobre o sentido das evidências empíricas na confirmação de teorias científicas. Foi a propósito da confirmação de teorias ( 'confirmação' significa aqui "apoio indutivo" mais ou menos forte) que Carl Gustav Hempel (nascido na Alemanha, em 1905, e falecido nos Estados Unidos, em 1997, para onde emigrara em 1939) apresentou este 'paradoxo', em 1943. 
Vejamos as seguintes proposições:
(1) Todos os corvos são negros. 
(2) Todas as coisas que não são negras não são corvos. (Ou: Todas as coisas não-negras são não-corvos).
Como ambas são logicamente equivalentes, o que confirmar (1) (no sentido de reforçar a hipótese de ser verdadeira) confirma (2) e vice-versa.
Assim, numa perspectiva verificacionista, cada corvo negro observado reforça a possível verdade de que todos os corvos são negros; mas qualquer coisa de qualquer cor que não o negro fará logicamente o mesmo serviço - algo que se pode fazer sem sair do sofá. Ora, é esta conclusão (de que tudo o que não é negro - como o meu carro cinzento, uma maçã vermelha ou o gato castanho da minha vizinha - confirma que todos os corvos são negros) que surge como insensata ou absurda. Agora, se aceitarmos esta noção contra-intuitiva de confirmação, então o meu carro cinzento ou uma maçã vermelha (que são coisas não-brancas e não-corvos) também confirmará a proposição "Todos os corvos são brancos"!* Paradoxalmente, o mesmo objecto serviria para confirmar duas teses antagónicas.

Paulo Lopes
* Supondo, é claro, que não tivéssemos observado nenhum contra-exemplo (nomeadamente, um corvo negro)
P.S.: Para uma abordagem mais robusta e matizada (incluindo as soluções apresentadas), consulte-se, por exemplo, António Zilhão: