sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A alegoria da caverna: perplexidades (2)

2) Em segundo lugar, porque é que os prisioneiros são do sexo masculino? Que pormenor relevante teria Platão em vista que pudesse justificar esta opção? Se são semelhantes a nós (como pretende Sócrates), não seria mais adequado que houvesse homens e mulheres?


Paulo Lopes

2 comentários:

Castro L. disse...

1. Bom, a mesma questão poderia ser colocada relativamente a praticamente todos os diálogos de Platão: somente os homens de Atenas têm um papel activo relativamente ao saber; são apenas eles que deambulam no proscénio do conhecimento. O aparecimento de uma mulher, elegível a esse respeito, seria sempre uma excepção, já que as mulheres eram semi-analfabetas e tinham um lugar secundário, de fundo. Estariam muito enleadas com as coisas afectivas, com o "pathos", o que constituiria um elemento perturbador e incapacitante de inteligir. Este ambiente cultural matava qualquer possibilidade epistemológica de relevo, no plano social, às mulheres. Apesar de em "O Banquete", a expensas de uma mulher (a sacerdotisa Diotima, extra-interlocutora de Sócrates), Platão espraiar na teoria do "Eros", ela é mais frequentemente vista como inclinada para o mistério e astúcia (suponho que isso é dito em "Leis"). Também na República (454e), Platão associa a mulher à maternidade (falando embora de uma complementaridade com o homem, que "engendra"). Na Alegoria, Platão mais não faz do que evidenciar que o mundo da caverna - das aparências, do sensível - está, sem embargo, reservado aos homens, àqueles que poderiam libertar-se dele e ascender ao mundo da realidade. Portanto, quando é dito "semelhantes a nós" vale por dizer "semelhantes a nós homens". Por outro lado, não há nenhuma garantia de que “homens que vivem em morada subterrânea, em forma de caverna” signifique apenas ‘homens’ e, sob esta designação, não homens e mulheres. Acresce ainda outra dificuldade: “Eles assemelham-se-nos” enquanto prisioneiros ou enquanto homens?, já que essa precisão é dada, logo no início, depois da exclamação de glauco “Que estranho quadro e que estranhos prisioneiros!” Apesar de ser uma ambiguidade forçada, ela existe na minha tradução portuguesa.

Fernando Castro L.

Phronesis disse...

"Na Alegoria, Platão mais não faz do que evidenciar que o mundo da caverna - das aparências, do sensível - está, sem embargo, reservado aos homens, àqueles que poderiam libertar-se dele e ascender ao mundo da realidade." A ideia de 'reservado aos homens' - como se usufruíssem de um privilégio -, parece-me um pouco forçada. Também penso que a crença de que esses homens podem libertar-se (sozinhos?) e ascender ao mundo da realidade testemunha um optimismo que não parece ser muito platónico: a alegoria mostra antes a dificuldade das massas em ascender ao mundo da realidade; é por isso que Platão menciona o dever, para quem é libertado (ou se liberta), de educar os que ficaram, aqueles que resistem a serem educados, a acederem àquilo que, apesar de difícil, seria bom para eles. Que a caverna seja a antecâmara de uma ascensão generalizada não me parece uma ideia platónica.
Histórica e culturalmente, a mesma questão - reconheço-o - poderia ser colocada, não especificamente em relação às obras de Platão, mas à cultura grega em geral.
Obrigado pela participação.

Paulo