O que está ao abrigo da dúvida?
O argumento cartesiano do sonho sugere a possibilidade de que a nossa vida seja um sonho (porque não podemos
racionalmente excluir, de modo definitivo, a hipótese — remota, sem dúvida —, de
que estamos a sonhar). Um dos primeiros exemplos que nos ocorre avançar para
contrariar esta possibilidade é uma das mais simples operações aritméticas:
2+2=4 é uma proposição verdadeira, quer estejamos a dormir quer estejamos a
sonhar, não é verdade? É possível que não seja verdadeira? Descartes pega
justamente nesta possibilidade, radicalizando mais a dúvida: não seria possível
existir um génio maligno todo-poderoso (assim como uma espécie de deus maligno) capaz de
nos enganar sistematicamente, mesmo naquilo que consideramos óbvio? Se um
hipnotista consegue induzir, em muitas pessoas, os estados mentais e as crenças
mais extravagantes — como, por exemplo, levar alguém a contar até 10 sem se
aperceber que saltou o 4 —, mais facilmente o faria um génio maligno, se tal
ser existisse.
Assim, pois, uma crença do género da proposição 2+2=4 (que tomamos
por ‘obviamente verdadeira’) poderia ser falsa, se o génio maligno nos
enganasse sistematicamente.
Paulo Lopes