sábado, 3 de setembro de 2011

O Génio Maligno: René Descartes


O que está ao abrigo da dúvida?
O argumento cartesiano do sonho sugere a possibilidade de que a nossa vida seja um sonho (porque não podemos racionalmente excluir, de modo definitivo, a hipótese — remota, sem dúvida —, de que estamos a sonhar). Um dos primeiros exemplos que nos ocorre avançar para contrariar esta possibilidade é uma das mais simples operações aritméticas: 2+2=4 é uma proposição verdadeira, quer estejamos a dormir quer estejamos a sonhar, não é verdade? É possível que não seja verdadeira? Descartes pega justamente nesta possibilidade, radicalizando mais a dúvida: não seria possível existir um génio maligno todo-poderoso (assim como uma espécie de deus maligno) capaz de nos enganar sistematicamente, mesmo naquilo que consideramos óbvio? Se um hipnotista consegue induzir, em muitas pessoas, os estados mentais e as crenças mais extravagantes — como, por exemplo, levar alguém a contar até 10 sem se aperceber que saltou o 4 —, mais facilmente o faria um génio maligno, se tal ser existisse.
Assim, pois, uma crença do género da proposição 2+2=4 (que tomamos por ‘obviamente verdadeira’) poderia ser falsa, se o génio maligno nos enganasse sistematicamente.

Paulo Lopes

5 comentários:

Castro L. disse...

20+20=40 é igualmente uma expressão verdadeira porque válida num sistema decimal. No entanto, a validade decorre deste sistema referencial. Num sistema hexadecimal, 3X4=C. Ainda que C seja equivalente a 12 – logo, na essência, o mesmo valor ou quantidade –, a representação ou simbologia, ou código são diferentes. Assim, 12, neste sistema hexadecimal, não é um resultado válido para 3X4; mas, por exemplo, 3X6=12 é válido. E também é obviamente verdadeira a expressão. Por outro lado, num sistema modular circular de base 12 – como o do relógio –, 8+6=2. Ou, num modular de base 3, 2+2=1. Em resumo, nem precisaríamos de estar a dormir ou a sonhar para 2+2 não serem igual a 4. Depende do sistema em que sonhamos. Não há nada exteriormente a nós que exista como “2+2=4”, ou somente “2”. Trata-se de uma sistema abstrato de considerar as coisas exteriores objetivamente em termos de quantidade; ou, alternativamente, tomar unidades ou conjuntos de objetos abstratamente; portanto, de modo sistemático independentemente das coisas existentes. “O maior nº primo” não tem uma referência concreta, mas tem uma referência a um dado sistema, pelo que faz sentido enquanto tal. Por isto é que duvido que pudesse haver alguma coisa como “2+2=2” verdadeiro ou “2+2=5” falso independente de mim e do meu sistema, ou seja, que se mantivesse solitariamente para lá de mim. Por conseguinte, julgo que mesmo sem a hipótese do génio maligno, do sonho ou de outra perspetiva enganadora, isto é, estando eu plenamente acordado, uma dada expressão aritmética pode ser ora falsa ora verdadeira consoante o sistema referencial, ainda que, substancialmente, possam estar ambas certas, como “3X6=12” e “3X6=18”; isso depende, pois, do sistema referencial (da mesma maneira, podemos imaginar um sistema em que “2+2=5” é verdadeiro, mas falso no sistema decimal). A dúvida pode instalar-se desde logo quanto a nossa crença seja abalada voluntariamente.

Castro L. disse...

Venho corrigir: onde está escrito "num modular de base 3, 2+2=1-", deve ler-se "num de base 3, 2+2=11". A versão inicial é falsa (ou poderia ser verdadeira num sistema por mim desconhecido). Achei esta precisão útil. Quanto ao resto, o que está fica, pois seria agora inconveniente alterar.

Phronesis disse...

Olá.
Concordo contigo, genericamente - exceto duas coisas. Uma: "duvido que pudesse haver alguma coisa como “2+2=2” verdadeiro ou “2+2=5” falso independente de mim e do meu sistema". Claro que 'independente de mim' é um acrescento ilegítimo e 'do meu sistema', sendo inteiramente pertinente, aplica-se também ao exemplo dado na entrada (que é do próprio Descartes). Ou seja, pretendes sugerir que Descartes ou alguém discordaria disso? Claro que Descartes não forneceu o exemplo assim - porque escreveu em francês, algo que eu não tinha dito em lado nenhum, mas que qualquer pessoa decerto saberá. Assim como qualquer pessoa admitirá sensatamente que, noutro sistema numérico de referência, a frase poderia ser falsa sem mais. Mas não estará implícito para todos o seu (e nosso) sistema de referência, tal como a língua em que ele se exprimiu?

Outra coisa: penso que não é legítimo concluir que, mesmo estando acordado, '2+2=4' 'poderia' ser falsa ou verdadeira, consoante o sistema de referência: ou é verdadeira ou é falsa no sistema de referência concreto em que estamos. Agora, se quisesses usar um exemplo de um sistema de base 12 (ou outro qualquer que o teu capricho te indicasse), não poderias legitimamente usar o mesmíssimo exemplo, não é verdade?

Manda sempre (enriqueces o meu 'espólio'). :)

Paulo

Castro L. disse...

Deixa: um génio maligno ou um Deus enganador não conseguiria enganar-nos de modo a que 2+2=4 fosse ou se transformasse numa proposição falsa. (Suspendendo e excetuando agora o que disse anteriormente sobre contexto ou sistemas de referência.)

‘2+2=4’ ser verdadeiro ou ser falso não é o mesmo que sermos, hipoteticamente, enganados, sermos levados a enganarmo-nos ou enganarmo-nos sistematicamente com a adição de 2+2 (mantenho este exemplo aritmético, por conforto e analogia com o da 1ª Meditação, [9]). Com efeito, Descartes não apresenta nenhum resultado para essa adição trivial e diz simplesmente que é enganado na soma – isto é, não apresenta nenhuma proposição. Antes, e à frente, quando expõe o resultado, aporta à verdade, mas não quando coloca a hesitação sobre esta ação banal ou certeza matemática da adição na Primeira Meditação, em [9]. Não se conseguiria, pois, sem um resultado matemático, atribuir um valor de verdade por antecipação, com base num hipotético Deus enganador. Seria improvável um tal Deus enganar-nos de modo a que a proposição 2+2=4 fosse falsa, se não houvéssemos primeiramente de a conceber como verdadeira. Sem se afirmar ou negar nada acerca de 2+2 – que seria a condição para qualquer valoração lógica –, então não podemos ser enganados de modo a que ‘2+2=4’ seja falsa. Realmente, seguindo a Meditação (9), “=4” não faria parte do engano, mas somente 2+2: ele não formula uma proposição, porque não nega que 2+2 não sejam 4, que seria a condição para ser falsa. Deus impedi-lo-ia somente de chegar ao resultado. Nem tampouco, creio, estaria ele a supor ou sugerir, naquele passo alusivo à adição, que pensava a proposição 2+2=4 como falsa, porque Deus, arbitrariamente, assim tivesse querido.

Portanto, creio que esta parte (9) da primeira meditação não acata a verdade ou falsidade entendidas do ponto de vista lógico. Logo, a proposição 2+2=4 não parece estar ali ao abrigo da dúvida.

Enganarmo-nos sobre a adição de 2+2 não é o mesmo que denotar um valor de verdade: poderia ser a sensação de que somos simplesmente incapazes de somar corretamente, isto é, de chegar àquele resultado, de exprimi-lo ou traduzi-lo com o algarismo ou nº certo, e de, por conseguinte, atribuirmos qualquer valoração lógica, suspeitando apenas de que pelo engano ou inaptidão, tendencialmente, seriam devolvidos valores errados, incertos, ‘falsos’. Não sabemos se, com Deus a enganá-lo, é originado um equívoco ou erro sistemático, se é levado a enganar-se operativamente, se é somente enganado (forma passiva) como instrumento da vontade divina de maneira a que não chegue a nenhuma verdade matemática, isto é, se é dirigido simplesmente à faculdade de somar, que é perdida (errar enquanto se age é uma ideia diferente apresentada na Quarta Meditação, como extravasamento da vontade sobre o entendimento e pelo livre-arbítrio). A hipótese de um Deus enganador respeitaria à ação de somar e não a nenhuma propriedade matemática ou lógica. O que o engano poderia fomentar seria, precisamente, a falta de sentido ou domínio lógico, erradicando-o. Uma vez que o universo cartesiano da 1ª meditação é um tanto solipsista, ou unipessoal, seria indecidível a valoração exata da adição (em [9]), senão por Deus ou outro ser dotado de instrumentação lógica e de uma função epistemológica que entrasse naquele universo, ou seja, também, de uma metalinguagem. Em [9], há a presunção de que o enunciador se poderia enganar, ser enganado ou ser levado a errar; e, se sabe em que consiste o engano ou tem consciência dele – isto é, que erra na soma de 2 e 3 –, talvez detenha a chave ou função veritativa, nesta simulação: 2+3#5 é sempre falso. Por outro lado, um Deus enganador que nos desprovesse da faculdade de somar seria absurdo, pois não faria sentido, então, que supuséssemos que a detínhamos.

Phronesis disse...

Em primeiro lugar, peço desculpa por só agora reagir à continuação do teu comentário. Foi falta de organização da minha parte e não qualquer desatenção ativa da minha parte: recebo um aviso de cada novo comentário na minha caixa de correio; o problema é que, numa altura de muitas solicitações de trabalho, essa mensagem foi descendo e a lista de mensagens engrossando, enquanto eu tratava de algumas. E só agora, que estou de férias e resolvi 'limpar' a caixa de entrada de mensagens é que reparei que já lá estava há muito tempo. Poderia até ter surgido, en passant, noutros contactos que tivemos, uma menção ao teu comentário - mas, como isso não aconteceu, acabei por ficar desagradado comigo próprio, pela minha falta de organização. Mais uma vez, as minhas desculpas. Espero que isso não afete muito a tua motivação para voltares a visitar a Paradoxilia!
Entretanto, sobre o teu comentário, só pretendo fazer duas observações.
"‘2+2=4’ ser VERDADEIRO ou ser falso não é o mesmo que sermos, hipoteticamente, enganados, sermos levados a enganarmo-nos ou enganarmo-nos sistematicamente com a adição de 2+2" - penso que aqui 'verdadeiro' está a mais, não é?

"Sem se afirmar ou negar nada acerca de 2+2 – que seria a condição para qualquer valoração lógica –, então não podemos ser enganados de modo a que ‘2+2=4’ seja falsa." Sobre esta tua ideia, discordo. Podemos ser enganados numa adição: enganarmo-nos numa adição - quando só há um resultado aritmético possível - é aplicarmos erradamente as regras de transformação que nos permitem transformar adequadamente uma expressão ('2+2') noutra ('2+2=4'). Isto também se aplica à afirmação de que "enganarmo-nos sobre a adiçlão de 2+2 não é o mesmo que denotar um valor de verdade": na prática, é o mesmo.
Acho que as tuas observações revelam um olhar clínico e incisivo (ainda que a expressão não seja tão concisa :) ) e, ainda que me pareçam um pouco especiosas, admiro e agradeço o trabalho analítico que as precedeu.
Até mais ou menos breve (espero)!

Paulo